sexta-feira, 11 de maio de 2012

Solo

Mudamos para o último andar do arranha-céu mais alto da cidade já sabendo do principal inconveniente: o piano. Como levá-lo até lá em cima? Lembro que liguei para várias transportadoras, alugamos um guindaste e pedimos autorização do prédio. Lembra do seu zelo pelo instrumento? Compramos ele de nossa professora de música e você, receosa de que acontecesse algo, olhou nos olhos da meia dúzia de funcionários que fariam o serviço e pediu cuidado nos nós das cordas que o levariam até a nossa sala, sala de recém-casados. Um mês e três dias, denunciou o calendário naquela ocasião. 
Calendário maldito! O mesmo que fez esses cinco anos passarem depressa. Ou teriam se arrastado? O mesmo que fez a euforia no atraso da sua menstruação resultar no desalento da gravidez interrompida aos três meses. Nosso sentimento de perda se prolongou por um longo período, incontável nas folhinhas. Calendário traiçoeiro! Esticou as noites de brigas e intensificou os dias que ficamos sem nos falar. O amor? Não sei mais como se chama isso. Nossos momentos de alegria já estavam menores do que os segundos, raros nas vinte e quatro horas de convivência; nas sete ou seis horas na cama; na uma hora no almoço de domingo. 
Já ligaram da imobiliária? O porteiro me disse que havia alguém interessado no apartamento. Deixaram algum recado com você? O rapaz da transportadora ligou dizendo que vai atrasar uns minutos, muito trânsito. Não, não é o mesmo funcionário que o trouxe até aqui. Esse parece ser mais experiente. O leilão? Sim, será amanhã. 50% para cada um, como combinamos, sim. Será pelas oito, você vai? Já tirei minha última camisa do cabide e peguei minha escova de dentes. A sua está lá ainda. Ambas estavam desgastadas. Evitam-se dentro do potinho apoiado na pia. Vou ficar naquela kitchenet no centro, se precisar de alguma coisa... 
Vou indo. Vou antes me despedir dele, do nosso piano, posso? Vou me sentar em meu lugar habitual do banco e tocar nosso dueto. Depois, sigo carreira solo. 

Um comentário:

Kleber Gomes de Oliveira disse...

"Esse tem um peso e tanto, mesmo para os olhos de um leigo"